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segunda-feira, 6 de outubro de 2014

A infância de meninas e meninos

A infância de meninas e meninos não é a mesma. Foi o que mostrou a pesquisa “Por Ser Menina no Brasil: Crescendo entre Direitos e Violências” com objetivo verificar o contexto de direitos, violências, barreiras, sonhos e superações a partir do próprio olhar das meninas. Os resultados acabaram trazendo à tona um contexto de gritantes desigualdades de gênero, que prejudicam o pleno desenvolvimento das suas habilidades das meninas para a vida.
As entrevistas foram realizadas entre os meses de julho e setembro de 2013 nos estados do Pará, Maranhão, São Paulo, Mato Grosso e Rio Grande do Sul. As capitais desses estados foram escolhidas pela sua representatividade em suas respectivas regiões, com potencial de indicar as tendências regionais. As meninas e meninas adolescentes participantes da pesquisa foram distribuídas entre 1.609 da amostra das escolas, 149 do estrato de meninas quilombolas e 13 meninas fora da escola. 51,9% das meninas ouvidas têm entre 11 e 14 anos e 47,6% entre 06 e 10 anos (0,58% não informaram a idade). A cor da pele foi considerada de acordo com critérios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 39,1% das meninas têm cor da pele branca, 6,2% preta, 1,2% amarela, 53,2% parda (morena) e 0,3% indígena. O maior contingente de participantes foi de meninas que estudam em escolas da zona urbana (76,5%), enquanto a zona rural foi representada por 23,5%.
No link abaixo, a pesquisa completa:
http://plan-international.org/where-we-work/americas/brazil/sobre-a-plan-no-brasil/pesquisaporsermenina/

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Sobre as crianças e a cidade

Segue abaixo uma despretensiosa tradução minha de um artigo muito bom que saiu essa semana na revista francesa Nouvel Observateur sobre a progressiva privação do acesso das crianças ao espaço público. Naturalmente, a tradução pode ser utilizada, mas peço que citem a fonte devidamente. 

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Como impedimos as crianças de andar

Schepman, THIBAUT. Comment on a interdit aux enfants de marcher
Tradução: Cibele Noronha de Carvalho



Escolha, ao acaso, um filme que mostre um horário de saída de escola primária. Se ele se passa por volta dos anos 50 ou 60 _  nós fizemos o teste com “Meu Tio” ou “A Guerra dos Botões”_ então você verá a maioria das crianças deixando a escola à pé. Quanto mais o filme é recente, maior a probabilidade de que o aluno volte de carro. Se você não tem vontade de investigar a sua cinemateca, dê uma olhada na rua: a quase totalidade dos escolares não são pedestres, mas passageiros.

Os _muito raros_ estudos consagrados ao tema confirmam que as crianças andam cada vez menos. Uma enquete realizada em Languedoc-Roussillon em 2008 e publicada pelo Commissariat général do développement durablel (CGDD)*, estima que “70% de todos os deslocamentos das crianças entre 6 e 14 anos são efetuados de carro.”



Figura 1

Uma outra enquete publicada pelo Centre d´études sur les résseaux, les transports, l´urbanisme e as constructions publiques (Certu)** em 2007 sobre os trajetos em direção à escola primária em Lille e em Lion, mostrava que, mesmo nas grandes metrópoles, as crianças vão cada vez mais e majoritariamente à escola em um carro de passageiros.

Não se afaste demais, heim!

Por que andam tão pouco? Porque nós lhes impedimos! O médico britânico Willian Bird o mostrou isso, acompanhando a família Thomas, que vive e anda há quatro gerações na mesma cidade de Sheffield, no Norte da Inglaterra.

Em 2007, ele publicou um mapa no qual podemos ver o raio de deslocamento autorizado à idade de 8 anos se reduzir ao longo de quatro gerações.


Figura 2  O mapa de Sheffield por Willian Bird, 2007

·      Em 2007, o jovem Ed Thomas teria o direito, aos 8 anos, de ir somente até o fim da rua à menos de 300m de sua casa;

·       Em 1979, sua mãe Vicky teria o direito de ir somente até a piscina à 800m da casa dela;
·       Em 1950, seu avô Jack poderia ir ao bosque à mais de 1,5km da casa dela;
·       Em 1919, seu bisavô George estava autorizado a ir pescar até cerca de 10km da casa dele.


“Evidentemente, as crianças não têm a proibição de andar, mas lidam com muitas interdições na rua. Elas têm limites espaciais para não ultrapassar o entorno de sua casa. Esse limite tanto pode ser uma árvore ou uma casa que foi designada por seus pais.

Isso é frequentemente muito restritivo. Em geral, antes do CM2[1], as crianças não têm o direito de atravessar a sua rua.” _ decifra o antropólogo e urbanista Pascale Legué que vem realizando muitas pesquisas sobre esse tema na França desde o início dos anos 90, principalmente acompanhando crianças em seus deslocamentos.
  
A falta do carro

Desde quando essas proibições se multiplicaram? A pesquisadora cita os trabalhos do historiador Philippe Ariès (“A criança e a rua, da cidade à anti-cidade”, “Ensaios de memória, 1943-1983”, ed. Seuil, 1993), que mostram que a criança começou pouco a pouco a perder seu papel social na cidade a partir do século XIX.

Mas, precisa ela, é no meio do século XX que começa as crianças começam a abandonar a rua. A pesquisadora afirma:

“A criança que corre ou que brinca nas ruas desapareceu de nossos imaginários sobre a cidade. Seu lugar é agora nos espaços reservados, nos parques, nas áreas de recreação ou nos pilotis dos prédios.”

Segundo ela, a responsabilidade é dos urbanistas "que conceberam a cidade para adultos motorizados". As crianças são menos capazes de interpretar e de reagir à velocidade de um carro, retiramos delas seu direito à cidade, como o mostra os esquemas abaixo:




Figura 3. Esferas concêntricas representando os deslocamentos autorizados às crianças em diversos universos urbanos <<L´enfant dans la ville>>, estudo etnológico, àscale Legué, 1994, SCIC, CDC


Mylène Coulais, 56 anos, cuja família vive há quatro gerações em Chauray, na grande periferia de Niort (Deux-Sèvres), quis debruçar-se conosco sobre a história da marcha de sua família.

Da mercearia ao supermercado

Ela se lembra:
“Minha avó nasceu em 1916. Quando era muito jovem, ela ia à lavandeira à pé, 500 metros da casa dela e um pouco mais tarde, ia à pé à cidade ao lado, 5 ou 6 km de lá. Meus pais não iam tão longe à pé, mas eles iam sozinhos à escola, juntando-se a outras crianças no trajeto. Eu também ia sozinha e voltava à pé, ao meio dia, a gente andava muito.

Quando minha filha Emilie chegou à idade de ir pra escola, ela tinha mudado de lugar porque a cidade tinha crescido muito. Quando eu era pequena, éramos 500 habitantes na cidade, hoje somos 5000 pessoas que trabalham em Niort.

O município tinha disponibilizado uma rede de ônibus gratuitos para a escola então minhas crianças iam de ônibus ou de carro. Mas, fora do trajeto para a escola, as crianças pararam de andar. Antes, a gente tinha uma atividade física, à pé, agora a gente os conduz. A gente os deixava fazer o percurso até a mercearia, mas agora essa possibilidade não existe mais, além disso, não há mais mercearias, a gente vai ao supermercado. Contudo, a gente começou a criar um Pedibus para que os pais acompanhem as crianças até a escola à pé.”  

Uma relação com o mundo “transformada”

Essas mudanças têm consequências importantes para as crianças. Primeiro, constata-se que elas estejam menos resistentes que há 30 anos: a capacidade física delas têm regredido cerca de 2% por década. Ora os especialistas convidam: uma prática prolongada e cotidiana de caminhada poderia ser suficiente para conter esse declínio.

A arquiteta Sabine Chardonnet-Darmaillacq se inquieta igualmente: “Qual é a representação de estar fora e de rua quando nos interditaram andar nela durante toda nossa infância? É a relação com o mundo das crianças que é transformada.”

Para lhes devolver o direito de andar, o urbanista Thierry Paquot propõe a interdição da circulação dos carros ao redor das escolas quinze minutos antes e quinze minutos depois da entrada e da saída das crianças.

Pascale Legué propõe igualmente repensarmos a frente das escolas onde “colocamos barreiras para afastar as crianças dos lugares previstos para estacionar.” Ela cita, sem nomear, o exemplo de uma comunidade de Vendée que considerou transformar um grande espaço diante de duas escolas, dedicando-o totalmente aos pedestres, mas que renunciou diante da oposição dos pais. O urbanista lamenta:

“O espaço diante das escolas poderia se tornar um lugar de troca e de jogo. Poderíamos também implantar jardins e fazer dali um lugar de vida para todas as gerações. Ao contrário disso, a gente pensa tudo para o carro e nos reservamos em seguida, cada um nos seus espaços particulares.”

Os passos perdidos das crianças são, decididamente, um belo espelho de nossas cidades.


Fonte: Schepman, THIBAUT. Comment on a interdit aux enfants de marcher. Le Nouvel Observateur. Acessado em: 1 de outubro de 2014. http://rue89.nouvelobs.com/2014/10/01/comment-a-interdit-enfants-marcher-255181





*Delegacia Geral para o Desenvolvimento Sustentável
**Centro de Estudos das Redes, transporte, urbanismo e Construções Públicas
[1] Última fase da École Primaire que as crianças completam, em geral, com 10, 11 anos.