Segue abaixo uma despretensiosa tradução minha de um artigo muito bom que saiu essa semana na revista francesa Nouvel Observateur sobre a progressiva privação do acesso das crianças ao espaço público. Naturalmente, a tradução pode ser utilizada, mas peço que citem a fonte devidamente.
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Como
impedimos as crianças de andar
Schepman, THIBAUT. Comment on a interdit aux enfants de marcher
Tradução:
Cibele Noronha de Carvalho
Escolha,
ao acaso, um filme que mostre um horário de saída de escola primária. Se ele se
passa por volta dos anos 50 ou 60 _ nós
fizemos o teste com “Meu Tio” ou “A Guerra dos Botões”_ então você verá a
maioria das crianças deixando a escola à pé. Quanto mais o filme é recente,
maior a probabilidade de que o aluno volte de carro. Se você não tem vontade de
investigar a sua cinemateca, dê uma olhada na rua: a quase totalidade dos escolares
não são pedestres, mas passageiros.
Os
_muito raros_ estudos consagrados ao tema confirmam que as crianças andam cada
vez menos. Uma enquete realizada em Languedoc-Roussillon em 2008 e publicada
pelo Commissariat général do développement
durablel (CGDD)*, estima que “70% de todos os deslocamentos das crianças
entre 6 e 14 anos são efetuados de carro.”
Figura 1
Uma
outra enquete publicada pelo Centre
d´études sur les résseaux, les transports, l´urbanisme e as constructions
publiques (Certu)** em 2007 sobre os trajetos em direção à escola primária em
Lille e em Lion, mostrava que, mesmo nas grandes metrópoles, as crianças vão
cada vez mais e majoritariamente à escola em um carro de passageiros.
Não se afaste demais, heim!
Por
que andam tão pouco? Porque nós lhes impedimos! O médico britânico Willian Bird
o mostrou isso, acompanhando a família Thomas, que vive e anda há quatro
gerações na mesma cidade de Sheffield, no Norte da Inglaterra.
Em
2007, ele publicou um mapa no qual podemos ver o raio de deslocamento
autorizado à idade de 8 anos se reduzir ao longo de quatro gerações.
Figura 2 O mapa de Sheffield por Willian Bird, 2007
· Em
2007, o jovem Ed Thomas teria o direito, aos 8 anos, de ir somente até o fim da
rua à menos de 300m de sua casa;
·
Em
1979, sua mãe Vicky teria o direito de ir somente até a piscina à 800m da casa
dela;
·
Em
1950, seu avô Jack poderia ir ao bosque à mais de 1,5km da casa dela;
·
Em
1919, seu bisavô George estava autorizado a ir pescar até cerca de 10km da casa
dele.
“Evidentemente,
as crianças não têm a proibição de andar, mas lidam com muitas interdições na
rua. Elas têm limites espaciais para não ultrapassar o entorno de sua casa. Esse
limite tanto pode ser uma árvore ou uma casa que foi designada por seus pais.
Isso
é frequentemente muito restritivo. Em geral, antes do CM2,
as crianças não têm o direito de atravessar a sua rua.” _ decifra o antropólogo
e urbanista Pascale Legué que vem realizando muitas pesquisas sobre esse tema na
França desde o início dos anos 90, principalmente acompanhando crianças em seus
deslocamentos.
A falta do carro
Desde
quando essas proibições se multiplicaram? A pesquisadora cita os trabalhos do
historiador Philippe Ariès (“A criança e a rua, da cidade à anti-cidade”,
“Ensaios de memória, 1943-1983”, ed. Seuil, 1993), que mostram que a criança
começou pouco a pouco a perder seu papel social na cidade a partir do século
XIX.
Mas,
precisa ela, é no meio do século XX que começa as
crianças começam a abandonar a rua. A pesquisadora afirma:
“A
criança que corre ou que brinca nas ruas desapareceu de nossos imaginários
sobre a cidade. Seu lugar é agora nos espaços reservados, nos parques, nas
áreas de recreação ou nos pilotis dos prédios.”
Segundo
ela, a responsabilidade é dos urbanistas "que conceberam a cidade para adultos
motorizados". As crianças são menos capazes de interpretar e de reagir à velocidade
de um carro, retiramos delas seu direito à cidade, como o mostra os esquemas
abaixo:
Figura 3.
Esferas concêntricas representando os deslocamentos autorizados às crianças em
diversos universos urbanos <<L´enfant dans la ville>>, estudo
etnológico, àscale Legué, 1994, SCIC, CDC
Mylène
Coulais, 56 anos, cuja família vive há quatro gerações em Chauray, na grande
periferia de Niort (Deux-Sèvres), quis debruçar-se conosco sobre a história da marcha de
sua família.
Da mercearia ao
supermercado
Ela
se lembra:
“Minha
avó nasceu em 1916. Quando era muito jovem, ela ia à lavandeira à pé, 500
metros da casa dela e um pouco mais tarde, ia à pé à cidade ao lado, 5 ou 6 km
de lá. Meus pais não iam tão longe à pé, mas eles iam sozinhos à escola, juntando-se
a outras crianças no trajeto. Eu também ia sozinha e voltava à pé, ao meio dia,
a gente andava muito.
Quando
minha filha Emilie chegou à idade de ir pra escola, ela tinha mudado de lugar
porque a cidade tinha crescido muito. Quando eu era pequena, éramos 500
habitantes na cidade, hoje somos 5000 pessoas que trabalham em Niort.
O
município tinha disponibilizado uma rede de ônibus gratuitos para a escola
então minhas crianças iam de ônibus ou de carro. Mas, fora do trajeto
para a escola, as crianças pararam de andar. Antes, a gente tinha uma atividade
física, à pé, agora a gente os conduz. A gente os deixava fazer o percurso até
a mercearia, mas agora essa possibilidade não existe mais, além disso, não há mais
mercearias, a gente vai ao supermercado. Contudo, a gente começou a criar um Pedibus para que os pais acompanhem as
crianças até a escola à pé.”
Uma relação com o
mundo “transformada”
Essas
mudanças têm consequências importantes para as crianças. Primeiro, constata-se
que elas estejam menos resistentes que há 30 anos: a capacidade física delas
têm regredido cerca de 2% por década. Ora os especialistas convidam: uma
prática prolongada e cotidiana de caminhada poderia ser suficiente para conter
esse declínio.
A
arquiteta Sabine Chardonnet-Darmaillacq se inquieta igualmente: “Qual é a
representação de estar fora e de rua quando nos interditaram andar nela durante toda nossa infância? É a relação com o mundo das crianças que é
transformada.”
Para
lhes devolver o direito de andar, o urbanista Thierry Paquot propõe a
interdição da circulação dos carros ao redor das escolas quinze minutos antes e
quinze minutos depois da entrada e da saída das crianças.
Pascale
Legué propõe igualmente repensarmos a frente das escolas onde “colocamos barreiras para afastar as crianças dos lugares previstos para
estacionar.” Ela cita, sem nomear, o exemplo de uma comunidade de Vendée que
considerou transformar um grande espaço diante de duas escolas, dedicando-o totalmente aos pedestres, mas que renunciou diante da oposição dos pais. O
urbanista lamenta:
“O
espaço diante das escolas poderia se tornar um lugar de troca e de jogo. Poderíamos
também implantar jardins e fazer dali um lugar de vida para todas as gerações. Ao
contrário disso, a gente pensa tudo para o carro e nos reservamos em seguida, cada um nos seus espaços particulares.”
Os
passos perdidos das crianças são, decididamente, um belo espelho de nossas
cidades.
Fonte: Schepman, THIBAUT. Comment on a interdit aux enfants de marcher.
Le Nouvel Observateur. Acessado em: 1 de outubro de 2014.
http://rue89.nouvelobs.com/2014/10/01/comment-a-interdit-enfants-marcher-255181