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terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Os desenhos das crianças como produções simbólicas

Conhecer a infância: os desenhos das crianças como produções simbólicas
Manuel Jacinto Sarmento
In: Das Pesquisas com crianças à complexidade da infância - Altino J. Martins Filho & Patrícia D. Prado (Orgs.) - Campinas, SP: Autores Associados, 2011.

Extrato retirado do texto:

" Ouvir a voz das crianças: esta expressão condensa todo um programa, simultaneamente teórico, epistemológico e político.
  O programa teórico assenta na constatação de que as crianças têm sido silenciadas na afirmação da sua diferença ante os adultos, e na expressão autónoma dos seus modos de compreensão e interpretação do mundo; estudar as crianças como actores sociais de pleno direito, a partir do seu próprio campo, e analisar a infância como categoria social do tipo geracional é o objectivo a que se tem proposto a sociologia da infância, para quem "ouvir a voz das crianças" se constitui mesmo como uma directriz vertebradora na compreensão de factos e dinâmicas sociais em que as crianças contam (Qvortrup, 1991; Corsaro, 1997; James, Jenks & Prout, 1998; Sirota, 1998, Mayal, 2002). O programa epistemológico manifesta-se na ideia, cara à abordagem socioantropológica da infância, de que entre o mundo adulto e as crianças existe uma diferença que não é apenas de nível de registo ou de maturidade comunicativa, mas radica na alteridade da infância, insusceptível de ser resgatada pela memória que os adultos possuem das crianças que foram, mas que se exprime na peculiar organização do simbólico que a mente infantil e as culturas da infância proporcionam. O programa político exprime-se na constatação de que as crianças permanecem excessivamente afastadas dos núcleos centrais de decisão sobre aspectos que dizem respeito às condições colectivas de existência e que esse afastamento, sendo a expressão da dominação adulta, é um modo de hegemonia e de controlo, cujo resgate não encontra outra possibilidade senão precisamente por tornar presente a voz das crianças na participação social e na decisão política (Lee, 2001).
No entanto, o paradoxo maior da expressão "ouvir a voz das crianças" reside não apenas no facto de que ouvir não significa necessariamente escutar, mas no facto de que essa "voz" se exprime frequentemente no silêncio, encontra canais e meios de comunicação que se colocam fora da expressão verbal, sendo, aliás, frequentemente infrutíferos os esforços por configurar no interior das palavras infantis aquilo que é o sentido das vontades e das ideias das crianças. Mas essas ideias e vontades fazem-se "ouvir" nas múltiplas outras linguagens com que as crianças comunicam. Ouvir a voz é, assim,  mais do que a expressão literal de um acto de auscultação verbal (que, aliás, não deixa também de ser), uma metonímia que remete para um sentido mais geral de comunicação dialógica com as crianças, colhendo as suas diversificadas formas de expressão.
  O desenho infantil insere-se entre as mais importantes formas de expressão simbólica das crianças. Desde logo, porque o desenho precede a comunicação escrita (na verdade, precede mesmo a comunicação oral, dado que os bebés rabiscam antes ainda de articularem as primeiras palavras). Depois, porque o desenho infantil, não sendo apenas a representação de uma realidade que lhe é exterior, transporta, no gesto que o inscreve, formas infatis de apreensão do mundo - no duplo sentido que esta expressão permite de "incorporação" pela criança da realidade externa e de "aprisionamento" do mundo pelo acto de inscrição - articuladas com as diferentes fases etárias e a diversidade cultural. Nesse sentido o desenho infantil comunica, e fá-lo dado que as imagens são evocativas e referenciais de modo distinto e para além do que a linguagem verbal pode fazer.
Numa perspectiva sociológica, o desenho infantil não apenas releva de uma personalidade singular, a criança, por quem é elaborado e construído, mas inscreve-se na produção simbólica de um grupo social de tipo geracional - a infância -, que possui um estatuto específico na sociedade, e que, embora partilhe com os outros grupos geracionais as formas culturais múltiplas e complexas socialmente presentes, apresenta igualmente elementos culturais não redutíveis a essas formas, mas dependentes da condição infantil.
  O desenho das crianças necessita por isso de ser analisado num triplo enquadramento, articulando as várias dimensões de análise: primeiro, como um acto realizado por um sujeito concreto, para o qual são mobilizados saber, vontade, capacidade físico-motora, destreza técnica, emoções e afectos que identificam o sujeito como realidade singular e como produtor cultural único; segundo, no quadro da cultura de inserção que autoriza ou inibe a expressão gráfica da criança, que a exalta ou a recalca, que a instrui, a proíbe ou a liberta, e que o faz através do sistema específico de crenças, das representações e imagens sociais sobre a infância e das instituições que possui; terceiro, como uma expressão geracional específica, distinta da expressão plástica dos adultos, veiculadora de formas e conteúdos expressivos e representacionais que necessitam de ser lidos de acordo com uma gramática interpretativa das culturas da infância (Sarmento, 2004). A este propósito, alguns autores recusam mesmo a expressão "arte infantil", considerando precisamente essa diferença de estatuto da expressão plástica das crianças ante a pintura (ou escultura) adulta, não porque lhe falte dimensão estética, mas porque decorre de uma intencionalidade e de um sentido intrínseco distinto (Matthews, 2003).
  A conjugação das três dimensões de análise dos desenhos infantis tem tudo a ganhar se puder ser feita de modo que reverbere o conhecimento adquirido em cada um deles sobre os restantes, isto é, se articular as dimensões subjectivas, socioculturais e geracionais, constituída em torno de objectos que a exigem como condição da sua compreensão totalizadora, faz, a este propósito, todo o sentido.
O desenho infantil tem sido profundamente estudado, praticamente desde que se instituíram os fundamentos de um saber pericial sobre as crianças e sobre a infância. No entanto, a ênfase tem sido insistentemente colocada apenas numa dimensão de análise - a do desenho como expressão de uma subjectividade em formação. Acresce que a este viés psicologizante se adiciona uma visão largamente predominante nos estudos sobre a infância, que tende a abstractizar a criança em torno de categorias-padrão ou estádios de desenvolvimento, que tem destes uma visão linear, progressiva e teleológica, e que ignora os contextos sociais de inserção das crianças e a relação de mútua implicação das estruturas sociais e da acção infantil. A abstracção, linearidade e descontextualização, assacáveis à tradição da psicologia do desenvolvimento (Burman, 1994), não obstam a que a dimensão especificamente subjectiva da produção plástica das crianças e uma interpretação sociológica do desenho no desenvolvimento infantil não sejam indispensáveis, em diálogo com as disciplinas que mais profundamente têm contribuído para o seu conhecimento: a psicologia e a psicanálise. "

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