Extrato retirado do texto da antropóloga Clarice Cohn: "A experiência da infância e o aprendizado entre os Xikrin"
In: SILVA, Aracy L. da; NUNES, Angela; MACEDO, Ana Vera L. da S. (Orgs.). Crianças Indígenas: Ensaios Antropológicos. São Paulo: Global, 2002.
A CRIANÇA XIKRIN E SEU LUGAR NA SOCIEDADE
Mas quem são as crianças Xikrin e qual seu espaço na vida social? Essa questão, claro, não será completamente respondida nessas poucas linhas, mas podemos começar por dar uma idéia de seu lugar na sociedade Xikrin.
Em primeiro lugar, as crianças são fundamentais na definição das categorias de idade, as quais, com o gênero, são o meio privilegiado de estabelecer o status social dos indivíduos: o nascimento da criança consuma um casamento (assim como a falta de crianças e principalmente a morte de filho(s) são motivos para separação), e dá aos pais a condição de adulto, tornando-os mekrare, coletivo/filhos, os que têm filhos. É também pelo número de filhos que um homem ganha maior participação na oratória, ao alcançar uma quantidade que é sempre especificada com um mínimo de quatro filhos. Quanto à mulher, ela passa a fazer parte das reuniões para a pintura corporal coletiva apenas depois do nascimento de seu primeiro filho, sendo até então pintada em casa, pela mãe; as atividades coletivas dividem-nas, também, de acordo com o número de filhos, em três grupos: as que têm poucos filhos, as que têm muitos e as velhas. A velhice também é explicada pelos Xikrin e tem por referência os filhos: velho (mebengêt) é aquele que não tem mais filhos.
Note-se ainda, que, embora haja mães solteiras, as quais, portanto, ganham o status de mekrare sozinhas, essa condição afeta igualmente o casal. Desse modo com exceção das mães solteiras, e mesmo assim, apenas quando o homem não se assume pai da criança, uma mulher nunca fica grávida sozinha: é o casal que é dito grávido (metujarô - coletivo/grávido).
Os filhos são muito desejados, e não há preferência entre os sexos. Mas os Xikrin dizem que o melhor é ter filhos de sexos alternados: se o primeiro for homem, espera-se que o segundo seja mulher, e assim por diante. Para entender isso, basta lembrar que o ideal (ou seja, o que nem sempre pode ou é realizado na prática, mas é uma referência para todos) é que os irmãos "troquem nomes", ou seja, que o irmão dê seu nome para o filho da irmã e vice-versa. Ter filhos de sexo alternado é, portanto, também um arranjo ideal.
As crianças, como ficará claro, são excluídas de pouquíssimos acontecimentos que importam no cotidiano e nos rituais dessa sociedade. Seu cuidado toma a maior parte do tempo dos adultos; sua saúde, andanças e novos aprendizados são parte importante das conversas cotidianas, especialmente das mulheres. A elas, pouco é proibido.
Elas ocuapm quase todo o espaço da aldeia, mas sua inserção maior se dá no domínio feminino - a periferia da aldeia, o círculo das casas. Se as meninas vão passar toda a sua vida aí, os meninos começam cedo a se distanciar da casa materna e a se voltar ao centro, o espaço masculino, onde passam a dormir até que se casem e vão morar na casa da esposa. De fato, atualmente, os meninos nem sempre dormem no centro da aldeia; algumas vezes, grupos de rapazes resolvem ocupar o ngàb, mas nem todos lá dormem. São especialmente nos momentos rituais que eles costumam reunir-se para dormir no centro. Mas o que deve ficar claro é que os homens passam seus primeiros anos mais ligados ao universo feminino, e devem, ao longo da vida, desligar-se dele para ocupar seu lugar no centro, o domínio masculino.
O que seria específico às crianças Xikrin, que não é compartilhado pelos adultos? Certamente suas brincadeiras, algumas das quais, aliás, seus avós também brincavam quando tinham sua idade; os brinquedos, uma parte da cultura material voltada só à criança; e sua mobilidade, especialmente entre as casas. Não há, porém, entre os Xikrin um repertório musical infantil, como não há também para os adultos um repertório musical que seja independente de festas; ambos, adultos e crianças, cantam no cotidiano as músicas dos rituais, mengrere. Por outro lado, a pintura corporal é um importante marcador de sua condição, diferenciando-as dos adultos em motivos e contextos de uso, e explicitando o fim de um ciclo, o fim da infância, quando formam uma nova família.
Não se pode dizer que a participação das crianças nas atividades produtivas seja crucial. A das meninas talvez seja mais necessária, já que, cuidando das crianças menores, possibilitam à mãe realizar suas tarefas cotidianas. No entanto, os adultos normalmente pedem às crianças que façam coisas menores, como pegar algo, trazer água, reavivar o fogo etc., e as crianças, por estarem livres das restrições sociais que impedem vários adultos de falar entre si e de se visitar, são importantes na comunicação entre as casas.
E, por fim, quem são afinal as crianças Xikrin, ou como elas são divididas por categorias de idade? Um recém-nascido é dito karore, e recebe muitos cuidados especiais. Seu pai não deve caçar, sua mãe deve comer, nos primeiros dias, apenas palmito e castanha, ampliando sua dieta com produtos da roça, peixe, até, finalmente, os pais poderem voltar a comer carne. É nos primeiros dias que a criança recebe um nome: um menino, de um dos avôs ou do irmão de sua mãe, uma menina, de uma das avós ou da irmã de seu pai. Logo que o umbigo cai, os pais começam a retornar à sua vida normal. A criança começa, então, a engordar e crescer; quando sua pele estiver "dura" (kà tôx), a mãe já retomou todas as suas atividades. As crianças Xikrin mamam até bem tarde, "abandonando o peito" (kà re), como eles dizem, apenas quando nasce um irmãozinho. É raro que todos na aldeia já saibam seu nome, e é mais comum essa criança ser chamada de karore (que poderíamos talvez traduzir por nenê), ou de "menina" (kurere) ou "menino" (bokti). Quando começa a andar, seu cabelo será cortado do modo Kayapó, sua pintura corporal mudará, e ela não é mais chamada "nenê", mas criança (meprire, no singular prin), independente de seu sexo. Os Xikrin dizem que o ideal é que a mãe volte a engravidar apenas nesse momento, mas atualmente, as gestações têm sido mais próximas umas das outras.
As crianças vão então ganhando mais espaço, ficando cada vez menos atreladas à mãe. Elas se reúnem cada vez mais em grupos. O menino começa, desde cedo, a se soltar mais pela aldeia, a se afastar da casa materna; formam grupos de mesma idade e são ditos meokre. Esses grupos reúnem meninos com alguma diferença de idade entre si, e definidos mais pela categoria que pela idade relativa; um menino de 5 anos já se aventura mais longe da mãe, e pode se juntar a um desses grupos; os meninos mais velhos brincando no pátio têm por volta de 10 anos. Os meokre andam pelo pátio, pelo campo formado pela pista de pouso e pela beira do rio, não se aventurando muito mais longe que isso. Crescendo um pouco mais, passam a maior parte do tempo com seus companheiros de idade, formando grupos dos mebokti. Os mebokti já se aventuram mais longe, planejando excursões de coleta na capoeira e nos caminhos das roças. Essa fase só passa quando ele se torna norony, reside no ngàb e está mais afastado da casa materna. A menina ao crescer torna-se uma kurereti e, enfim, uma printi (quando já mocinha, mas ainda solteira). Como vimos, ela tem menos mobilidade, permanecendo para sempre na casa da mãe. No entanto, elas também se reúnem em grupos para brincar, e as amizades que criam duram para toda a vida.
É logo após o nascimento que a criança tem o lóbulo de sua orelha perfurado e, se for menino, o lábio. Neles são inseridos pequenos fios de algodão. Quando a criança cresce, o furo do lábio dos meninos é preenchido por um pequeno adorno de madeira (akokakô), que se fixa no interior do lábio por uma extremidade me forma de T. Em alguns meninos, esse furo é ainda aumentado e preenchido por um pequeno batoque redondo; na maioria, ele permanece pequeno e é adornado por um fio de contas de miçangas. Nos lóbulos das orelhas, o algodão é substituído também por um pequeno cilindro de madeira pintado com urucum (bàridjua), que vai sendo aumentado gradativamente, enquanto ganha o formato de um cone, e é retirado quando a criança começa a andar, para nunca mais ser usado. Antigamente, os homens usavam o batoque labial na idade adulta, e seu tamanho era indicativo da capacidade oratória. Hoje em dia, os meninos usam esse adorno até a idade de aproximadamente 6 ou 7 anos, retirando-o depois para sempre.
Os pais têm orgulho de seus filhos quando eles se mostram voluntariosos ou "brabos", como glosam o termo okrê. É okrê uma criança que responde, emite opiniões, e reage quando provocada. É comum que pais e avós a provoquem, divertindo-se e orgulhando-se com sua reação. Pais e avós são sempre muito atentos à natureza própria das crianças, que não se tenta mudar: um grupo de irmãos é diferenciado, pelos pais ou avós orgulhosos, quanto à personalidade de cada um, sendo uns "bravos", como vimos, outros mais tranquilos (referidos pela negativa okrê kêt, não bravos), e outros curiosos e espertos (os quais podem ser referidos por uma variedade de expressões, como no mex, "ollho bom", que ficarão mais claras adiante).
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