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domingo, 17 de abril de 2011

Criança como índice versus criança como agente.

Criança como índice versus criança como agente.
 
Extrato retirado do artigo da antropóloga Flávia Pires: "O que as crianças podem fazer pela antropologia?" 

Referência do artigo completo:
PIRES, Flávia. O que as crianças podem fazer pela antropologia? Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 16, n. 34, p. 137-157, jul./dez. 2010.

Para acessar a revista onde se encontra disponível o artigo, clique aqui.


A socialização poderia ser pensada como a aquisição gradativa de conhecimentos sobre determinado assunto. A criança, ser passivo, aprende. O adulto, ser ativo, ensina. A relação seria unilateral e não comportaria direções contrárias. A linha do conhecimento viria, literalmente, de cima para baixo. A cultura se adquiriria em um processo semelhante. A criança – um ser associal em quem a cultura será inculcada. O trabalho de socialização das crianças seria visto como um mecanismo progressivo de aquisição de cultura. Essa maneira de pensar repousa sobre a definição do adulto portador de cultura, do bebê enquanto ser associal e da criança enquanto ser se tornando social à medida da inculcação dos padrões de comportamento culturais de sua região natal. Nesse sentido, cultura é algo que se adquire, que está localizada no mundo dos adultos e cabe a eles passá-la adiante. A cultura teria um remetente e destinatário, assim como um endereço fixo.
Uma antropologia comprometida com um conceito de cultura substantivado e, consequentemente, pouco dinâmico, produziu estudos sobre crianças que privilegiaram a visão de socialização infantil como mecanismo gradativo de obtenção de cultura. Foram os estudos onde as crianças eram tratadas como índices do mundo adulto (Rapport; Overing, 2000).20 Strathern e Toren (Strathern et al., 1996) mostram que nesse esquema considerado obsoleto (sociedade como entidade) é a cultura que vai “socializar” os indivíduos, tornando-os seres sociais. Parte-se do princípio de um reino natural e externo a ser “socializado” pelo mundo da cultura ou do social. A educação das crianças foi pensada a partir desse modelo, na medida em que elas eram consideradas parte de um mundo natural, reino da biologia, reino dos instintos. Para Toren, a noção de socialização tem origem no século XIX e está presente em todos os modelos europeus que visavam a educação infantil do século XX, desde o de Freud ao de Skinner (Strathern et al., 1996, p. 73). Além disso, ela foi construída a partir de uma noção cristã da Idade Média de que a criança deveria ser moldada como a argila ou o betume. A partir da sua inserção gradativa na sociedade as crianças iriam se tornando seres sociais. Aprenderiam a falar, a andar, a comer à mesa e muito mais tarde teriam uma profissão que definiria seu lugar no mundo social. Doravante, ela será tanto mais social quanto mais bem-sucedida for no mundo social. A criança seria, gradativamente, “moldada” pelos adultos.
É contra essa concepção de socialização que vem falando Toren (ou domesticação, nas palavras de Ingold). O processo pelo qual nos tornamos quem somos difere radicalmente, nos termos de Toren (1999), da chamada “socialização” que tem como objetivo formar seres padronizados, através da inculcação da cultura. Os sistemas autopoiéticos produzem seres únicos, já que nenhuma história de encontros com os outros organismos é idêntica, nem mesmo no caso de gêmeos intrauterinos. Por isso, não há como determinar como a criança será no futuro, já que o que acontece no processo micro-histórico escapa às previsões dos pais e dos especialistas. A forma como Ingold e Hallam (2007, p. 1, tradução minha, grifo dos autores) introduzem seu livro Criativity and cultural improvisation pode ser transcrita aqui: “Não há roteiro para a vida social e cultural. […] Em uma palavra, […] tem que improvisar.”
O que quero propor é que esses conceitos de cultura e sociedade, implicados na noção de socialização, tal como descrita previamente, não parecem dar conta de compreender o que se passa no mundo adulto nem, muito menos, no mundo infantil. A cultura não reside estática na cabeça dos adultos, esperando ser enviada passivamente para as cabeças infantis. Abordagens sobre a infância que tratam as crianças como agentes sociais, produtores de cultura e personagens históricos (só para citar alguns exemplos: Bluebond-Langner, 1978; Briggs, 1992; Cohn, 2002; Corsaro, 2003, 2005; Nascimento, 2007; Nunes, 1999; Pires, 2009; Tassinari, 2001; Toren, 1990, 1999), levam em consideração que: 1) não há uma idade única para o aprendizado cultural: não apenas as crianças aprendem, mas os adultos não cessam de aprender; 2) as crianças aprendem tanto quanto ensinam, dos/aos seus pares e dos/aos adultos; 3) aprendizagem não se faz apenas por via consciente e racional, mas também através de outras maneiras de conhecer e aprender.
O conceito de cultura e de sociedade adequado a essas três afirmações parte da ideia de que não há uma cultura estática a ser ensinada ou passada de pai para filho. A cultura seria, então, algo dinâmico que se constitui a cada momento. Ela não existe enquanto um a priori, senão a cada momento em que é atualizada. Aprofundar estes tópicos parece-me essencial para o desenvolvimento dessa área de estudos, e poderá também contribuir sobremaneira para a antropologia de modo geral.
Além disso, pensar as crianças como organismos, nas palavras de Ingold, ou como sistemas autopoiéticos, nas palavras de Maturana e Varela retomadas por Toren, são possibilidades que nos levariam a, em outras palavras, tomar as crianças como agentes e, dessa forma, ultrapassar o conceito de cultura no qual as crianças só tinham lugar enquanto índices do mundo adulto.
Uma das possíveis contribuições dos estudos sobre crianças para a antropologia é que eles podem evidenciar a natureza dual do ser social, produtor e reprodutor de cultura. Seria inocência acreditar que a agência infantil é absoluta, e autores como Alan Prout (2005), um dos pais dos New social studies of childhood, já o reconheceram. As crianças dependem dos adultos. Elas são inseridas em um mundo de adultos, um mundo onde são os adultos que, geralmente, dão a última palavra. Por outro lado, algumas pesquisas na área da antropologia da criança e da infância vêm tentando, desde as duas últimas décadas do século passado, explorar o que há de ativo nos primeiros anos de vida do indivíduo, em que medida as crianças são autônomas, em que medida seu mundo não é um mundo adulto em miniatura. O livro Crianças indígenas: ensaios antropológicos (Silva; Macedo; Nunes, 2002), por exemplo, é uma dessas tentativas. Nesse livro, a partir de várias pesquisas de campo em sociedades indígenas, os autores vão tecendo uma vasta rede de agência infantil. Para citar apenas alguns exemplos: Aracy Lopes da Silva (2002) chama as crianças de pequenos “xamãs”: porta de entrada do novo na comunidade, já que as crianças propõem soluções criativas para problemas da comunidade. Mariana Kawall Leal Ferreira (2002) apresenta crianças submetidas a situação de miséria que inventam uma outra maneira de ganhar a vida, muito diferente daquela esperada pelos seus pais. Outro exemplo se dá em diferente contexto etnográfico, como mostra Toren (1999, p. 87-101) a respeito de Fiji; as crianças concebem o mundo de maneira distinta dos adultos: no ritual da yaqona a visão das crianças difere radicalmente das dos adultos. Assim, se de um lado as crianças são conformadas por um mundo de adultos, por outro lado elas conformam o mundo dos adultos. Entretanto, a pergunta que precisamos nos fazer, enquanto antropólogos que estudam crianças, é: mas não é assim em todas as fases da vida? Os adultos também não conformam a realidade social e são conformados por ela?
O que quero propor é que crianças (e adultos) sejam pensados dinamicamente em relação à influência chamada cultural ou social. Se, através de pesquisas etnográficas, for possível demonstrar a validade dessas três afirmações apresentadas anteriormente, poderíamos dizer que já não estaríamos operando com o conceito de cultura ou sociedade enquanto uma entidade, o que parece ter sido a tônica nos estudos de criança como índice. Estaríamos pensando a cultura e a sociedade antes de tudo como uma relação, seja entre crianças-adultos, crianças-crianças ou adultos-adultos. Indo na direção dos estudos da antropologia da criança e da infância que tratam as crianças como agentes sem, no entanto, simplesmente inverter do polo coletivista para o polo individualista. É sobre isso que me deterei agora.
Ao tratar as crianças como agentes corre-se o risco de simplesmente inverter o pêndulo da sociedade para o indivíduo sem conceber mudança teórica significativa. Strathern (Strathern et al., 1996) alertou sobre a obsolescência pragmática do conceito de sociedade justamente porque ele engendra uma série de outros conceitos, entre os quais o de indivíduo, também comprometido com uma ideia de sociedade como entidade, na medida em que a sociedade é concebida como um todo onde os indivíduos constituem as partes. Simplesmente passar da abstração da sociedade para uma abordagem na qual o indivíduo constitui o centro absoluto não modifica em muito o quadro. Quando Margaret Thatcher diz: “A sociedade não existe. Há homens e mulheres individuais e há suas famílias”,25 ela julga ter resolvido o problema: extingue-se a sociedade, uma abstração, e constituem-se os indivíduos, consumidores reais no mercado livre. Strathern mostra, ao contrário, que o conceito de sociedade está intrinsecamente ligado ao conceito de indivíduo e que para fugir de um deles não é sufi ciente ou possível esconder-se atrás do outro.
Para Strathern (Strathern et al., 1996, p. 66, tradução minha), “o primeiro passo é apreender as pessoas como, ao mesmo tempo, contendo o potencial para relacionamentos e sempre embebidas em uma matriz de relações com os outros”.26 Não se trata de conceber um individualismo radical a partir dos estudos das crianças. Trata-se de estar ciente da criança como sujeito ativo em seu próprio mundo social (note-se: o mundo da criança também é social, Ingold concordaria) e não como um ser passivo às margens de um mundo social dos adultos.27 Toren (Strathern et al., 1996) propõe a noção de “sociality” no lugar da de sociedade. Embora também estejamos frente a uma abstração, a “sociality” denota processos sociais dinâmicos nos quais as pessoas estão inseridas. A ideia de sociedade, da qual a de socialização é filha, denota um conjunto de regras/costumes/estruturas/sentidos que existem como um sistema independentemente do indivíduo que será socializado (Strathern et al., 1996, p. 74). Toren trabalha contra a ideia de um bebê enquanto uma tabula rasa, na qual uma sociedade (ou uma cultura), abstrata e descorporificada, será inscrita. Alternativamente, o caminho proposto é outro:

Vamos tomar uma nova perspectiva – de onde, no coração de nossos estudos, nós colocamos pessoas que, como sujeitos históricos ativos e objetos da ação de outras pessoas, são ao mesmo tempo produtos e produtores de significados infinitamente variáveis, mas não arbitrários. (Strathern et al., 1996, p. 76, tradução minha).

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